sábado, 5 de março de 2016

A LEI ANTIMANICOMIAL E A PERICULOSIDADE DO AGENTE - COMENTÁRIOS À LEI № 10.216/2001 (Trabalho destinado à avaliação curricular da disciplina Psicologia Jurídica, ministrada pelo Profº. Carlos Henrique Martinez no Curso de Bacharelado em Direito FCS)

Falar em uma lei antimanicomial é falar em direitos humanos; é voltar a enxergar o portador de transtorno mental como o ser humano que ele nunca deixou de ser e também o sujeito de direitos legalmente protegido.
A preocupação com os direitos humanos ganhou fôlego no mundo pós Segunda Guerra Mundial, entretanto o assunto remonta às fases iniciais do Movimento Constitucionalista e esse primeiro contato com os temas relacionados aos direitos humanos revela, de imediato, a sua amplitude. Esta pode ser resumida na conhecida expressão que afirma que “direitos humanos é o direito das pessoas em condição de vulnerabilidade”. Neste caso, não é custoso definir que o estado de vulnerabilidade daquele que é portador do antes se denominava de doença mental é bastante considerável e inclusive de igual monta que essas vulnerabilidades afligem severamente a todos os seres humanos e daqui se depreende um outro entendimento: quanto menos condição de se reconhecer como sujeito de direitos mais vulnerável é o ser humano. Além disso, o indivíduo nestas condições pode ostentar todo o tipo de vulnerabilidade, que lhe aflige os fatores econômicos, sociais, biológicos, familiares, históricos, entre tantos outros.
Um conceito de pessoa em condição de vulnerabilidade pode ser visto no texto aprovado pela XIV Conferência Judicial Ibero-Americana, ocorrida em Brasília, que no ano de 2008 proclamou as Cem Regras de Acesso à Justiça:
Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de  justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o gênero e a privação de liberdade. 

As pessoas com deficiência mental estão sujeitas a discriminação e fortes estigmas, constituindo um grupo ainda mais vulnerável à violações de direitos humanos a nível global. Quatro relatores das nações unidas constataram que as pessoas com deficiências mentais sofrem, além das mais perversas formas de discriminação, difíceis condições de vida, se comparados a qualquer outro grupo vulnerável da sociedade. As práticas violatórias dos direitos de pessoas com deficiências mentais seguem padrões similares em todo o mundo. Essas pessoas são arbitraria e desnecessariamente segregadas da sociedade em instituições psiquiátricas, onde se encontram sujeitas a tratamento desumano e degradante ou a tortura.
Intentando mudar este quadro, iniciou-se no Brasil, por volta da década de setenta, uma reforma na estrutura psiquiátrica, devido às excessivas internações involuntárias, junto às antigas clínicas para enfermidades dessa natureza.
Esta reforma seu deu em duas fases:
· A primeira de 1978 a 1991, tendo como principal característica o modelo de internação do paciente em estabelecimentos psiquiátricos exclusivos;
· A segunda vai de 1992 aos dias atuais, caracterizando-se, principalmente por buscar o tratamento dos portadores de transtornos psíquicos pela implantação do serviço público de saúde a serviços extra-hospitalares.
Em contrapartida, nasce um movimento de luta pelos direitos dos pacientes, exigindo que estes tivessem melhores condições de tratamento e acomodação, bem como a superação do antigo modelo. A luta antimanicomial pode ser definida como a busca incessante pela melhoria das condições de tratamento da pessoa com transtorno mental, no Brasil e no mundo. É travada há longa data, e pode-se dizer, sem medo de errar, que estamos muito distantes de vencê-la.
Nos dias atuais é consenso geral a necessidade de combate ao modelo segregatório e desumanizante das chamadas instituições totais e suas características asilares, que longe, muito longe de recuperar, apenas agravam a situação do ser humano ali submetido a tratamento.
Acompanhando este viés, nasce então a Lei Federal nº 10216/2001, oferecendo um tratamento digno aos internos, gratuito à comunidade, com o Art. 2º, parágrafo único, e os incisos V e VII defendendo o direito dos internos ao tratamento sem discriminação, com direito a assistência técnica, implantando um modelo de reforma psiquiátrica voltada para a atenção pública em saúde mental. Essa política busca acabar com o degradante modelo de internação asilar em manicômios, situação que viola os mais básicos direitos humanos dos pacientes e ainda não apresenta qualquer efetividade quanto à prevenção, tratamento e muito menos reabilitação e reinserção social das pessoas portadoras de transtornos mentais.
DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNO MENTAL
Como toda lei que visa proteger direitos, seu artigo primeiro faz uma exortação do direito ao tratamento isonômico de todos os tutelados, vedando qualquer forma de discriminação baseada em raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno mental.
Na sequência, a lei fixa, em rol exemplificativo, os direitos dos pacientes com transtorno mental. Interessante notar que no momento da internação é obrigatória a ciência de tais direitos aos pacientes e seus familiares ou responsáveis, o que deve ser feito de modo formal, ou seja, em documento escrito.
De certa forma, a lista dos direitos destes pacientes remete a direitos já tutelados pela ordem constitucional, tais como receber tratamento digno e humano; ter acesso aos recursos da saúde pública adequados à suas necessidades; sigilo sobre suas informações médicas (prontuários); proteção contra qualquer forma de abuso enquanto pessoa vulnerável; livre acesso aos meios de comunicação como forma de evitar o isolamento do paciente; além de direitos peculiares a condição de paciente tais como o direito a presença médica permanente para esclarecer sobre a necessidade de internação; o direito de receber todas as informações sobre sua doença; de ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Outro grande destaque da lei, fruto da longa luta antimanicomial, consta do seu artigo quarto, que por indispensável se transcreve abaixo:
Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.
§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.

Do excerto acima se extrai que a internação do paciente com transtorno mental é, de fato, um recurso extremo, e que mesmo segregatório não pode deixar de visar a sua reinserção social. E mais, a lei indica que o mínimo que o Estado deve oferecer aos pacientes internados é um rol de serviços médicos, psicológicos, de assistência social, ocupacional, de lazer, assegurando o que a lei denomina de assistência integral.
Em outras palavras, a lei protege aqueles que impedidos de cuidar de si próprios, em razão do estado clínico que demanda cuidados intensivos, ou por incapacidade cognitiva irreversível, ou ainda pelo fato de terem perdido os vínculos familiares em razão do tempo de internação.
O enfraquecimento ou perda dos vínculos sociais e familiares é, de fato, uma das graves consequências dos longos internamentos em hospitais psiquiátricos asilares, é justamente o oposto do que almeja a lei e, sem sombra de dúvidas, o resultado mais perverso e negador dos direitos humanos de um paciente com transtorno mental.
Em substituição ao modelo combatido, previu-se ainda um modelo baseado na excepcionalidade da internação e prevalência de assistência extra-hospitalar, priorizando o atendimento em centros de atenção psicossocial e a desinstitucionalização dos pacientes de longa permanência. Os CAPS são unidades de saúde mental especializadas, onde são oferecidos desde cuidados clínicos até atividades de reinserção social do paciente. Na assistência extra-hospitalar, as pessoas com transtornos mentais continuam recebendo atendimento especializado sem ficarem internadas e, sempre que possível, preservando o convívio familiar. Mas para possibilitar a alta de pacientes que não possuem suporte social e perderam os laços familiares, foram criadas as residências terapêuticas, que são moradias destinadas a cuidar de até oito pessoas egressas de hospitais psiquiátricos.

Do ponto de vista médico, a reforma psiquiátrica veio para superar o paradigma de que a internação do “louco” é um ato terapêutico na busca da “cura” para a loucura, e que possui duplo efeito: proteger a sociedade do “louco” e proteger o “louco” dos graves problemas que sua doença pode ocasionar pela perda da noção de realidade, autoviolência e suicídios.
A edição da Lei 10.216 no ano de 2001 trouxe avanços no campo das políticas públicas, mas o Brasil ainda é herdeiro de um sistema de saúde mental impregnado da cultura de desrespeito aos direitos humanos dos pacientes.
Desde os anos oitenta o Brasil tem lutado corajosamente pela desinstitucionalização. Desinstitucionalizar é derrubar muros e reformular valores, para que haja humanização e respeito aos direitos dos portadores de Transtornos mentais.
O movimento nomeado de Luta Antimanicomial tem na superação do Manicômio, não apenas em sua estrutura física, mas, sobretudo, ideológica, seu grande objetivo. Busca-se a desconstrução da lógica manicomial como sinônimo de exclusão e violência institucional, bem como a criação de um novo lugar social para a loucura, dando ao portador de transtorno psíquico a possibilidade do exercício de sua cidadania. Neste sentido, a reinserção social passa a ser o principal objetivo da Reforma Psiquiátrica, tendo em vista potencializar a rede de relações do sujeito, através do resgate da noção de complexidade do fenômeno humano e reafirmação da capacidade de contratualidade do sujeito, criando assim um ambiente favorável para que aquele que sofre psiquicamente possa ter o suporte necessário para reinscrever-se no mundo como ator social.
Paulo Duarte de Carvalho Amarante e Walter Ferreira de Oliveira, explicando o núcleo essencial das ideias do movimento:
A luta antimanicomial definia o movimento pela saúde mental como um processo cultural no qual a produção social da qualidade da vida não corresponde a um território exclusivo de tecnocracias, mas a um campo aberto aos cidadãos; a idéia central de que as pessoas com transtorno mental integram o coletivo da cidade se estabelece então como parâmetro de inclusão, essencial a todo e qualquer projeto terapêutico.

 Nessa concepção, um sistema terapêutico deve ser um centro organizador de pessoas, saberes e práticas que visam à qualidade de vida do coletivo comunitário, a partir do ponto de vista daqueles que são usuários do sistema, seus sujeitos primordiais, e na perspectiva de uma ação contínua, crítica e transformadora das realidades pessoais, sociais e institucionais.
À guisa de conclusão, vemos que a Lei 10.216 de 06 de abril de 2001 é popularmente conhecida como a Lei Antimanicomial porque, não só dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos metais, mas também porque é uma releitura do modelo assistencial mental até então vigente no Brasil.
De maneira geral, nota-se que a presente tem a preocupação de deixar claro ser a internação a última alternativa, bem como destaca a importância de não afastar o doente do convívio social.

REFERÊNCIAS

MONTEIRO, Vitor Trigo. Modelo antimanicomial, medidas de segurança e direitos humanos. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28 jan. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23557>. Acesso em: 4 dez. 2015.


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