Falar em
uma lei antimanicomial é falar em direitos humanos; é voltar a enxergar o
portador de transtorno mental como o ser humano que ele nunca deixou de ser e
também o sujeito de direitos legalmente protegido.
A preocupação com os direitos humanos
ganhou fôlego no mundo pós Segunda Guerra Mundial, entretanto o assunto remonta
às fases iniciais do Movimento Constitucionalista e esse primeiro contato com os temas relacionados aos direitos
humanos revela, de imediato, a sua amplitude. Esta pode ser resumida na
conhecida expressão que afirma que “direitos humanos é o direito das pessoas em
condição de vulnerabilidade”. Neste caso, não é custoso definir que o estado de
vulnerabilidade daquele que é portador do antes se denominava de doença mental
é bastante considerável e inclusive de igual monta que essas vulnerabilidades
afligem severamente a todos os seres humanos e daqui se depreende um outro
entendimento: quanto menos condição de se reconhecer como sujeito de direitos
mais vulnerável é o ser humano. Além disso, o indivíduo nestas condições pode
ostentar todo o tipo de vulnerabilidade, que lhe aflige os fatores econômicos,
sociais, biológicos, familiares, históricos, entre tantos outros.
Um conceito
de pessoa em condição de vulnerabilidade pode ser visto no texto aprovado pela
XIV Conferência Judicial Ibero-Americana, ocorrida em Brasília, que no ano de
2008 proclamou as Cem Regras de Acesso à Justiça:
Consideram-se em
condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero,
estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas
e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude
perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento
jurídico.
Poderão constituir causas de
vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença
a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o
deslocamento interno, a pobreza, o gênero e a privação de liberdade.
As pessoas com deficiência mental estão
sujeitas a discriminação e fortes estigmas, constituindo um grupo ainda mais vulnerável
à violações de direitos humanos a nível global. Quatro relatores das nações
unidas constataram que as pessoas com deficiências mentais sofrem, além das
mais perversas formas de discriminação, difíceis condições de vida, se
comparados a qualquer outro grupo vulnerável da sociedade. As práticas violatórias dos direitos
de pessoas com deficiências mentais seguem padrões similares em todo o mundo. Essas pessoas são arbitraria e
desnecessariamente segregadas da sociedade em instituições psiquiátricas, onde
se encontram sujeitas a tratamento desumano e degradante ou a tortura.
Intentando
mudar este quadro, iniciou-se no Brasil, por volta da década de setenta, uma
reforma na estrutura psiquiátrica, devido às excessivas internações
involuntárias, junto às antigas clínicas para enfermidades dessa natureza.
Esta
reforma seu deu em duas fases:
· A primeira de 1978 a 1991, tendo como principal
característica o modelo de internação do paciente em estabelecimentos
psiquiátricos exclusivos;
· A segunda vai de 1992 aos dias atuais, caracterizando-se,
principalmente por buscar o tratamento dos portadores de transtornos psíquicos
pela implantação do serviço público de saúde a serviços extra-hospitalares.
Em contrapartida, nasce um movimento
de luta pelos direitos dos pacientes, exigindo que estes tivessem melhores
condições de tratamento e acomodação, bem como a superação do antigo modelo. A luta antimanicomial pode ser definida como a busca
incessante pela melhoria das condições de tratamento da pessoa com transtorno
mental, no Brasil e no mundo. É travada há longa data, e pode-se dizer, sem
medo de errar, que estamos muito distantes de vencê-la.
Nos dias atuais é consenso geral a
necessidade de combate ao modelo segregatório e desumanizante das chamadas
instituições totais e suas características asilares, que longe, muito longe de
recuperar, apenas agravam a situação do ser humano ali submetido a tratamento.
Acompanhando
este viés, nasce então a Lei Federal nº 10216/2001, oferecendo um tratamento
digno aos internos, gratuito à comunidade, com o Art. 2º, parágrafo único, e os incisos V e
VII defendendo o direito dos internos ao tratamento sem discriminação, com
direito a assistência técnica, implantando um modelo de reforma psiquiátrica
voltada para a atenção pública em saúde mental. Essa política busca acabar com
o degradante modelo de internação asilar em manicômios, situação que viola os
mais básicos direitos humanos dos pacientes e ainda não apresenta qualquer
efetividade quanto à prevenção, tratamento e muito menos reabilitação e
reinserção social das pessoas portadoras de transtornos mentais.
DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNO MENTAL
Como toda lei que visa proteger
direitos, seu artigo primeiro faz uma exortação do direito ao tratamento
isonômico de todos os tutelados, vedando qualquer forma de discriminação
baseada em raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política,
nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou
tempo de evolução de seu transtorno mental.
Na sequência, a lei fixa, em rol
exemplificativo, os direitos dos pacientes com transtorno mental. Interessante
notar que no momento da internação é obrigatória a ciência de tais direitos aos
pacientes e seus familiares ou responsáveis, o que deve ser feito de modo
formal, ou seja, em documento escrito.
De certa forma, a lista dos direitos
destes pacientes remete a direitos já tutelados pela ordem constitucional, tais
como receber tratamento digno e humano; ter acesso aos recursos da saúde
pública adequados à suas necessidades; sigilo sobre suas informações médicas
(prontuários); proteção contra qualquer forma de abuso enquanto pessoa
vulnerável; livre acesso aos meios de comunicação como forma de evitar o
isolamento do paciente; além de direitos peculiares a condição de paciente tais
como o direito a presença médica permanente para esclarecer sobre a necessidade
de internação; o direito de receber todas as informações sobre sua doença; de
ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e,
preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Outro grande destaque da lei, fruto da
longa luta antimanicomial, consta do seu artigo quarto, que por indispensável
se transcreve abaixo:
Art. 4º A internação, em qualquer de
suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se
mostrarem insuficientes.
§ 1º O tratamento
visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu
meio.
§ 2º O tratamento em
regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral
à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de
assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3º É vedada a internação de
pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características
asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no §
2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único
do art. 2º.
Do excerto acima se extrai que a
internação do paciente com transtorno mental é, de fato, um recurso extremo, e
que mesmo segregatório não pode deixar de visar a sua reinserção social. E
mais, a lei indica que o mínimo que o Estado deve oferecer aos pacientes
internados é um rol de serviços médicos, psicológicos, de assistência social,
ocupacional, de lazer, assegurando o que a lei denomina de assistência
integral.
Em outras palavras, a lei protege
aqueles que impedidos de cuidar de si próprios, em razão do estado clínico que
demanda cuidados intensivos, ou por incapacidade cognitiva irreversível, ou
ainda pelo fato de terem perdido os vínculos familiares em razão do tempo de
internação.
O enfraquecimento ou perda dos
vínculos sociais e familiares é, de fato, uma das graves consequências dos
longos internamentos em hospitais psiquiátricos asilares, é justamente o oposto
do que almeja a lei e, sem sombra de dúvidas, o resultado mais perverso e
negador dos direitos humanos de um paciente com transtorno mental.
Em substituição ao modelo
combatido, previu-se ainda um modelo baseado na excepcionalidade da internação
e prevalência de assistência extra-hospitalar, priorizando o atendimento em
centros de atenção psicossocial e a desinstitucionalização dos pacientes de
longa permanência. Os CAPS são unidades de saúde mental especializadas, onde
são oferecidos desde cuidados clínicos até atividades de reinserção social do
paciente. Na assistência extra-hospitalar, as pessoas com transtornos mentais
continuam recebendo atendimento especializado sem ficarem internadas e, sempre
que possível, preservando o convívio familiar. Mas para possibilitar a alta de
pacientes que não possuem suporte social e perderam os laços familiares, foram
criadas as residências terapêuticas, que são moradias destinadas a cuidar de
até oito pessoas egressas de hospitais psiquiátricos.
Do ponto de vista médico, a reforma
psiquiátrica veio para superar o paradigma de que a internação do “louco” é um
ato terapêutico na busca da “cura” para a loucura, e que possui duplo efeito:
proteger a sociedade do “louco” e proteger o “louco” dos graves problemas que
sua doença pode ocasionar pela perda da noção de realidade, autoviolência e suicídios.
A edição da Lei 10.216 no ano de 2001
trouxe avanços no campo das políticas públicas, mas o Brasil ainda é
herdeiro de um sistema de saúde mental impregnado da cultura de desrespeito aos
direitos humanos dos pacientes.
Desde os
anos oitenta o Brasil tem lutado corajosamente pela desinstitucionalização. Desinstitucionalizar
é derrubar muros e reformular valores, para que haja humanização e respeito aos
direitos dos portadores de Transtornos mentais.
O movimento nomeado de Luta Antimanicomial
tem na superação do Manicômio, não apenas em sua estrutura física, mas,
sobretudo, ideológica, seu grande objetivo. Busca-se a desconstrução da lógica
manicomial como sinônimo
de exclusão e violência institucional, bem como a criação de um novo lugar social
para a loucura, dando ao portador de transtorno psíquico a possibilidade do
exercício de sua cidadania. Neste sentido, a reinserção social passa a
ser o principal objetivo da Reforma Psiquiátrica, tendo em vista
potencializar a rede de relações do sujeito, através do resgate da noção de complexidade do fenômeno
humano e reafirmação da capacidade de contratualidade do sujeito, criando assim
um ambiente favorável para que aquele que sofre psiquicamente possa ter o
suporte necessário para reinscrever-se no mundo como ator social.
Paulo Duarte de Carvalho Amarante e
Walter Ferreira de Oliveira, explicando o núcleo essencial das ideias do
movimento:
A luta
antimanicomial definia o movimento pela saúde mental como um processo cultural
no qual a produção social da qualidade da vida não corresponde a um território
exclusivo de tecnocracias, mas a um campo aberto aos cidadãos; a idéia central
de que as pessoas com transtorno mental integram o coletivo da cidade se
estabelece então como parâmetro de inclusão, essencial a todo e qualquer
projeto terapêutico.
Nessa concepção, um sistema terapêutico deve
ser um centro organizador de pessoas, saberes e práticas que visam à qualidade
de vida do coletivo comunitário, a partir do ponto de vista daqueles que são
usuários do sistema, seus sujeitos primordiais, e na perspectiva de uma ação
contínua, crítica e transformadora das realidades pessoais, sociais e
institucionais.
À guisa de
conclusão, vemos que a Lei 10.216 de 06 de abril de 2001 é popularmente conhecida
como a Lei Antimanicomial porque, não só dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos metais, mas também porque é uma releitura
do modelo assistencial mental até então vigente no Brasil.
De maneira
geral, nota-se que a presente tem a preocupação de deixar claro ser a
internação a última alternativa, bem como destaca a importância de não afastar
o doente do convívio social.
REFERÊNCIAS
http://endireitados.jusbrasil.com.br/noticias/183758636/a-lei-antimanicomial-e-a-aplicacao-das-medidas-de-seguranca. Acesso
em 04/12/2015.
http://revistarepublica.anpr.org.br/?page_id=240. Acesso
em 04/12/2015.
MONTEIRO, Vitor Trigo. Modelo antimanicomial, medidas de segurança e
direitos humanos. Revista Jus Navigandi,
Teresina, ano 18, n. 3498, 28 jan. 2013.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23557>.
Acesso em: 4 dez. 2015.
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