segunda-feira, 27 de maio de 2013

Amor platônico


Entre letras e suspiros sobrevive o poeta da praça, sem beleza ou formosura. Ele sai todo dia cedinho de casa com a benção da mãe já bem velhinha e a benção do pai no retrato, de quem só resta a saudade. No banco da praça se assenta e para as beatas a caminho da missa ele acena.

E ele vê passar a D. Ruth, o Seu Marcelo, a D. Emília. Lá adiante, Seu João abre a banca e assim se oficia a primeira parte de seu dia: o café fresquinho, acomodado na garrafinha de alça vermelha, que a D. Francisquinha Lhe faz de bom grado. A prosa flui a cada gole e depois riem do Seu Pedro, macambúzio por natureza. Ele passa emproado, o cabelo na goma. O poeta mesura em troça, João dá bom dia, mas o ancião aos dois ignora, pois possui filho e neto já doutores e “doutor” não se dá com “gentinha.”

Finda a pausa, volta o trabalhador a seu lugarzinho e ali compõe o primeiro rabisco do dia: “Melodia de viver” – ele o batiza. O moço enamorado muito lhe agradece, rasga-lhe seda, chama-lhe de artista. O poeta, em discordância, diz que a arte é da D. Clarice, do Seu Drummond, da D. Coralina. Ele só tem a “cabeça boa” - endossa lembrando o que ouvia na tenra idade. Em prol do sustento, a pobreza só lhe permitiu pouca instrução. O rapaz meneia a cabeça e contesta, mas o poeta não lhe dá ouvidos, pois assim como o amor cega ele também ensurdece. Ora, pois, ela era quem vinha Dorinha, moça do sorriso de marfim. O sol de azul alumia sua negra cabeleira e de noite, a lua, com inveja dela, não sai.

Ela passa de casaco bordado, óculos escuros, passos de rainha e, por piedade, lança um cumprimento ao mortal plebeu que o acolhe num sussurro. Ela então se afasta carregando consigo a graça de sua passagem e o poeta de tristeza agoniza em silêncio.

O freguês, que a tudo assiste e nada entende, lhe dá a paga e se vai. O poeta ali permanece e com profundo pesar suspira, ansiando pela chegada de do dia seguinte.

sábado, 25 de maio de 2013

O Taylorismo morreu?



Para quem não está familiarizado com o termo, Taylorismo é a nomenclatura pela qual se denomina o modelo administrativo idealizado por Frederick Taylor. Sua característica principal é a ênfase nas tarefas. Em 1911, Taylor publicou o livro “Princípios da Administração Científica”, que tinha como ideia principal a racionalização do trabalho. Além disso, Frederick criticou veementemente a administração por incentivo e iniciativa, que é o que ocorre quando um trabalhador sugere ao patrão ideias que possam dar lucro e assim provocando seu superior de modo a ser recompensado por isso. Taylor defendia a tese de que, uma vez recompensado por suas ideias ou atos, o subordinado torna-se dependente deles.

Particularmente, aprecio os argumentos de Taylor no que tange à eficiência do trabalho, que envolve fazer as tarefas de modo mais inteligente e com a máxima economia de esforço, porém ainda em minha opinião, a Administração Científica só não alcançou a plenitude por causa de sua visão mecanicista ao extremo, expressão esta, quem sabe exagerada por parte desta que vos escreve, contudo as críticas apresentadas a este modelo de administração, das quais posso citar, como exemplo, a visão do homem como máquina e a ignorância quanto às necessidades do trabalhador em um contexto social, acredito eu, falam por si só. Taylor acreditava que para se chegar à eficiência era preciso selecionar corretamente o operário, e adestra-lo. Agora aqui vai uma perguntinha: ainda há trabalhadores sendo “adestrados”? Imagino alguém aí do outro soltando uma sonora gargalhada ao passo que emite um sinal positivo com a cabeça e assim creio que já temos condições de oferecer resposta ao questionamento que intitula este relato: não, o Taylorismo não morreu.

Profissionais e estudantes da área talvez se dirigissem a mim neste instante com a afirmação de que não há nada novo em meu questionamento e que muito menos uma questão desta natureza carecia de vir à tona. O método Taylorista (Taylorista/Fordista para ser mais precisa) de produção ainda é adotado nos dias de hoje, em maior escala nas atividades industriais, entretanto o modus operandi dos restaurantes de fast food também tiveram suas origens no Taylorismo. O que não me agrada na sobrevida deste modelo administrativo é a parte “homo economicus” da coisa. Ainda tem muito gestor por aí ignorando as necessidades não monetárias de seus liderados e os considerando como máquinas. Não estou fazendo nenhum tipo de apologia a qualquer forma romântica de administrar ou muito menos vendendo a ideia de que líderes devem ser piegas até porque considero a pieguice pouco inteligente (isso sem falar em seu uso como instrumento de manipulação e alienação). Só acho o cúmulo que em pleno século XXI ainda haja gestores com um pensamento tão provinciano, o que nos remete a outro questionamento: o porquê de eles serem assim. A princípio, podemos conjecturar que é por ignorância, mal que vem nos prejudicando há séculos. Paulo Freire com certeza diria que a saída é a educação - dever do Estado, todavia este não pode se utilizar de seu poder de império com vistas a condicionar um mínimo de preparo acadêmico ao que aspira empreender. O conhecimento é multifacetário e, assim sendo, da mesma maneira de que a imaginação conjugada à intuição pode levar um indivíduo a uma empreitada de sucesso, me custa também a acreditar que esta última não faça “soar o alarme” a fim de chamar a atenção destes despreparados. A saúde de uma organização não se mede tão somente por suas demonstrações financeiras. Alta rotatividade de funcionários e absenteísmo idem são tão preocupantes quanto um saldo financeiro negativo.

Vez por outra os noticiários nos apresentam a rotina dos fiscais do trabalho por esse Brasil afora desbaratando fazendas e outros empreendimentos onde se empregava mão de obra escrava e quão bom seria se houvessem iniciativas, públicas ou não, com o fito de erradicar esse paradigma mecanicista. O mundo moderno agora possui uma visão holística e já foi constatado de que só conseguirá sobreviver à pós modernidade aquele que dominar o conhecimento e a comunicação (em especial a de nível básico), bem como a resiliência e a proatividade. No que tange à comunicação,quando esta ocorre de maneira inadequada, pode desestabilizar todo um ambiente, causando sérios prejuízos à organização.

Em outubro do ano passado, um artigo muito interessante baseado no filme “Tempos Modernos” de Chaplin foi publicado no site administradores.com, onde nos são apresentados protótipos contemporâneos da maximização da produtividade do trabalhador, em moldes considerados mais sutis pelo autor, como por exemplo, o uso do celular corporativo e da internet, que permite ao funcionário despachar, resolver problemas ou até mesmo preparar relatórios enquanto está em casa ou no clube. Neste mesmo site, há poucos dias, uma outra obra, tão inteligente quanto esta foi postada para nosso deleite. Nela, seu criador, o colunista Wagner Siqueira questiona o porquê de os clássicos da administração não serem mais estudados. Devo confessar que ficar ciente de tal absurdo me causou um espanto enorme e honestamente acho que privar os estudantes de Administração destes conhecimentos produz os mesmos efeitos de se formar profissionais de saúde ignorantes quanto à anatomia e fisiologia humana.

Diante do exposto, fica mais do que óbvia a veracidade da máxima de que na natureza nada se perde, tudo se transforma e não vejo porque não remete-la ao mundo corporativo.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Sertanejo


Com o rubro céu, chega a tardinha. Espanta a passarada, a primeira aragem da noite.

Junto com as malhadas, volta o sertanejo da lida. O chapéu de palha desfiada esconde o cabelo lisinho. O sorriso é desfalcado de alguns dentes e um tanto rouca sai a sua voz ao entoar a primeira moda: é hora do comércio fechar, hora de chamar a criançada para o banho, hora de o sino badalar em anúncio à missa; e ele não vê a hora de se aconchegar nos braços de sua Rosa. Ele sabe que a encontrará a sua espera, com a janta quentinha à mesa, perfumada e com o cabelo bonito para ele notar.

Rosa é dona de casa caprichosa. Levanta com as galinhas, põe a água do café e enquanto a chaleira não chia, ela faz seu asseio. Asseio feito, ela côa o pretinho e mistura a farinha. Cuscuz já cheirando ela acorda o marido, vai labutar com os meninos e assim se vai a manhã. De tarde é costura até a hora de aprontar a janta.

Depois de todo mundo recolhido é que a Rosa se deita, mas não antes de tecer seu rosário. O sertanejo, não muito crente, ouve quietinho as sussurradas preces de gratidão pelo pão daquele dia, pela saúde das crianças, pelo bebê novo da vizinha, pela força nos braços para trabalhar. Passado esse momento, o sertanejo se vira e a Rosa, que é do dia, dá lugar a Rosa que é só dele. Rosa de doce cheiro, bom cheiro, agora vestida apenas com seus cabelos. Ele a toma e a ama até quando o galo canta em anúncio à primeira vigília. O amor se encerra trazendo as estrelas para mais perto e o casal junto adormece.

Ao raiar do dia, beija o sertanejo em despedida a sua amada e parte para o trabalho acompanhado de sua viola. A cantiga agora chama-se felicidade – versos que ele mesmo rabiscou.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Lírica Poesia Bíblica


Eu sou do meu amado e ele é meu. Como noiva me ataviei e me perfumei, e em meu jardim me assentei a sua espera.

Quão formoso é o meu amado em sua armadura! Homem valente, destro na guerra, nascido do Espírito. Ele vem e me mostra sua face. Meu coração se exalta ao som da sua voz. Seus olhos são da cor do mel, seus lábios como o fio da escarlata e é doce o seu falar.

Ele versa minha formosura, pois preciosos são os meus amores.  Adornada estou com seu coração; somos fonte selada, fruto excelente, formosos e aprazíveis às vistas do Pai.

Ele me põe como selo sobre teu braço e as muitas águas não podem nos afogar.  O meu amado é meu e eu sou dele; é meu, o meu amado e eu, dele sou, e de Deus, somos nós...

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Alice à janela


Alice serviu-se de uma caneca de café e foi degusta-la á janela. O ocaso era seu momento preferido do dia, não só pelo amarelo-rubro de que se pintava o céu. Era a hora do rush, momento em que as principais vias da cidade se tornariam um imenso lençol de luzes vermelhas. Com um risinho no canto da boca, Alice ponderava ser ela a única pessoa a ver poesia naquilo, mas era o jeito Alice de ser: viver à margem do comportamento urbano. Para ela era prazeroso sentir o cheiro do mar ao cruzar a Avenida Contorno, mesmo com o coletivo lotado.

Terminada a bebida, a mulher depositou a caneca a seus pés e prosseguiu em apreciar a paisagem. Residia em um bairro classe média e àquela hora as cenas mais frequentes eram os pais de família retornando de mais um dia de labuta e a molecada, sempre aos bandos, voltando da padaria. Vislumbrar aquelas embalagens brancas provocava-lhe um sentimento nostálgico – fora criança no tempo em que os sacos de pão eram de papel. Também em sua época, professores eram mais respeitados, dava-se valor à virgindade e não se pensava em transformar sandices em lei. Essa conjectura, tal como outrora, de igual modo a fez recordar-se de que houve um tempo em que a filosofia de alguém se pautava muito mais nas coisas que dizia do que em seu comportamento. E o que dizer do falar?! “Ah, o falar!” – suspirou ela – Arte tão deficiente entre aqueles que formam os atuais grupos de referência. Como seriam tais pessoas aos olhos de Aristóteles, Demóstenes e Cícero, famosos oradores? Verbosidade, aliás, assim pensava Alice, seguindo a mesma linha de raciocínio, era a menor das preocupações da sociedade atual. Carecia-se mais de valores. Importantes pilares da sociedade vêm sendo removidos sob a desculpa de que faz necessária a quebra de paradigmas e os que percebem o embuste vem sendo perseguidos, tachados de retrógrados intolerantes, preconceituosos; jogados aos leões pela mídia.

Um dia, alguém disse que os laços estavam muito apertados e é verdade. É só fazer um pequeno tour pela História e lá constatar que gerações inteiras foram, por assim dizer, “castradas” por causa do advento de ideologias embasadas em distorções da verdade, convenientemente vendidas como modelos de moral e bons costumes. As motivações para tais práticas foram, sobretudo, políticas e algumas delas infelizmente perduram até hoje.

Alice sentia-se indefesa e impotente diante de tal quadro ao passo que pensava se realmente havia o que ser feito, pois o mesmo povo que clama por justiça, tem sede de sangue, o mesmo povo que exige honestidade por parte de seus parlamentares tem por “otário” o seu semelhante que se recusa a participar daquele “negociozinho”, que por mais insignificante que pareça ser, não perde seu cunho escuso.

Se Alice desafiada fosse a nomear tal fenômeno e porque não dizer enfermidade que tem empurrado a coletividade ao abismo, não precisaria inventar nenhum vocábulo novo. Tratava-se de hedonismo e nada mais.

Cansada de fazer inferências, a mulher de estatura mediana decidiu deixar a janela, porém deteve-se mais um pouco por conta de escutar alguém gritar o seu nome. Seu rosto irradiou-se ao ver que se tratava de sua vizinha da frente que, após as gentilezas de praxe, perguntou-lhe quais seus planos para aquela noite, entretanto tomar ciência dos mesmos causou-lhe espanto, pois não entendeu o que levou a outra a marcar um compromisso daquela natureza bem na hora da novela.

sábado, 4 de maio de 2013

Hoje

Hoje eu estou assim, hoje estou eu; amanhã, eu não sei, só Deus.
Hoje estou com vontade de mim, vontade de tudo, vontade de momento... só hoje.
Hoje eu te quero, amanhã não vai mudar; o hoje me quer assim,
Hoje eu estou cheia, meu coração idem, cheio do que minha boca fala, cheio do bem.
Hoje a saudade fala, amanhã saudade é passado; hoje feliz, amanhã mais ainda;
Hoje há esperança, amanhã - bonança. Hoje choro, amanhã celebro.
Hoje estou Juliana, amanhã - Juliana melhor.
Hoje estou Narciso, daqui a pouco, te amo; amanhã, amo você e me amo todos os dias.
Hoje o tempo corre, hoje preciso do tempo, hoje - tempo pra ti; hoje te carrego aqui;
Hoje - amanhã carregarei o seu fruto. Hoje nasci para ti, amanhã serás feito para mim.
Hoje te pertenço, amanhã serás meu, pra sempre seremos nós, dois mais dois, igual a nós.
Hoje eu sou só eu, amanhã, alguém serei mais alguém, alguém - você
Hoje eu não me envergonho, amanhã sequer me constrangerei, pois
Hoje eu sei quem sou eu, e amanhã, mais conhecimento.
Hoje me fortifico na graça, amanhã - graça pelas graças.
Hoje estou nem aguá nem lua, hoje estou mar, estou litoral, literal...
Hoje original, amanhã tradução, transcrição; ipsi litteris...


quarta-feira, 1 de maio de 2013

A romancista


Sentada à beira do batente de mármore, uma moça borda. De letra em letra, segue ela a tecer seu folhetim. Os meninos passam e fazem troça; a preta enxerida se aproxima e espicha o olho. Margaridinha abraça o manuscrito e faz careta. A cativa se ofende e amaldiçoa-a por todos os seus deuses. A donzela de pele de porcelana, contudo, desdenha e após um muxoxo ergue-se empinando ainda mais o fidalgo nariz. Depois disso, toma a direção dos fundos da propriedade em busca de um novo retiro e escolhe então refugiar-se debaixo de um ipê lotado pela primavera de cachos de flores amarelas, sua cor preferida. Aos seus pés repousa uma relva verdinha onde a moçoila se acomoda. Suas finas feições são de menina, mas de seus poros emana um “quê” de mulher.

Ocupada?! Sempre! Seus delicados dedos, constantemente manchados pelo nanquim não paravam quietos. Somente ela conhecia o conteúdo daquelas páginas: o seu mundo, só seu. Aprendeu Margaridinha com seu querido avô que cada pessoa é responsável pela lavratura de seu destino e desde então se ocupava de tal intento. Ambicionava construir o seu próprio conto de fadas e dentro dele encarcerar-se toda vez que sua dura realidade feminina assim o requeresse. O quanto já dispendera de seu tempo com vistas a concluir o ofício não se sabia, entretanto Margaridinha não tinha pressa. Em quase uma década e meia de vida já perdera a conta de quantas vezes resolvera começar do zero, por capricho ou por simplesmente entender a diferença entre o correto e o corrigido.

Antes da lição aprendida, a donzela ambicionava estudar e tornar-se um bacharel, como seu irmão mais velho, enviado à Europa para tal fim. Porém seus sonhos foram por água abaixo quando sua mãe revelou-lhe que tal regalia era de gozo exclusivo dos nascidos sob o sexo masculino e que às fêmeas nada mais restava senão empreender com maestria nos assuntos domésticos. Margaridinha ficou triste por dias a fio e só voltou a alimentar-se por imposição paterna, que se valeu ainda da séria ameaça de encerra-la em um convento.

Alguns meses depois, arrumaram-lhe um noivo. O rapaz era pouco atraente, mas filho de um nobre muito rico, o que para seus pais já eram atributos suficientes. Margaridinha odiava-o com todas as forças de seu coração, todavia disfarçava tal emoção sob os desmandos da etiqueta. Preferia amar o seu soldado, o homem de seus escritos, sua cria, sua sina. Seu nome, inexprimível aos lábios da amante, coxeava tal e qual sua alma ferida a vagar errante pelo mundo. Mal sabia ele que a romancista estava prestes a cruzar o seu caminho com o de sua heroína, aquela que estava fadada a recebe-lo em seus braços, afagar-lhe os escuros cabelos e assegurar-lhe que a noite se foi e, com ela, o choro, entretanto o vivido homem, a princípio não crerá ser alguém de tão tenra idade aquela que irá lhe prestar os devidos méritos as suas virtudes. Resistirá ele bravamente ao que lhe ordena o coração e os encantos de sua amada, ora lhe serão aprazíveis, ora repugnantes. Margaridinha deveras emocionou-se quando sua fértil imaginação a remeteu a citada sinopse, contudo a tempestade que antecederia a bonança não a impedia de invejar a protagonista. Punha-se em seu lugar toda vez que a inspiração a tomava, entretanto cada retorno à realidade era doloroso.

O ecoar de seu nome arranca a jovem de seus devaneios. Ela se põe de pé após suspirar impacientemente e se põe a caminhar a passos lentos. A mesma serviçal que a amaldiçoara veio anunciar-lhe a chegada de seu futuro marido. Margaridinha não expressa emoção alguma. Aguardava-o todas as quartas àquele horário da mesma forma que Prometeu esperava a águia que vinha diariamente lhe devorar o fígado.

Indivíduos proativos e reativos: perfil ou treinamento?


Certa feita, me encontrava eu em uma clínica aguardando o término da impressão da guia de consulta que eu deveria assinar quando adentrou o recinto um casal. Eles se dirigiram ao mesmo funcionário que me atendia e lhe mostraram um documento. A folha, que parecia estar há muito tempo guardada, tinha um pequeno rasgo em uma de suas marcas de dobra. O jovem atendente a examinou por um curto espaço de tempo ao passo que o senhor que se apresentou como sendo o marido da paciente ia lhe dizendo o porquê de estarem ali. Passado esse instante, o funcionário devolveu-lhe o papel e alegou que o atendimento não seria possível por causa do dito rasgo. O homem protestou e eu me senti tentada a sair em sua defesa já que, em minha opinião e experiência (pois recepcionista de clínica tinha sido meu primeiro emprego) não havia nada ali que não pudesse ser resolvido com um pedaço de fita adesiva. Terminado o protesto, o jovem lamentou e afirmou que nada podia ser feito e aquilo fez com que o marido da paciente voltasse a reclamar e a cada intervalo, o atendente lhe oferecia, roboticamente, a mesma resposta. Novamente tive ímpetos de intervir, porém me contive pelos motivos óbvios.

No decorrer do dia, toda vez que me lembrava do ocorrido, a parte que mais retinia em minha mente era a maneira mecânica com a qual o jovem afirmava que nada podia ser feito e provavelmente alguém me lê nesse instante deve ter mentalmente exclamado: “que sujeito reativo!” Isso mesmo! Que sujeito reativo! Se alguém aí julgar o indivíduo passível de outro adjetivo, fique a vontade para tacha-lo na seção reservada aos comentários.

Na sei se isso acontece com todo bacharelando, mas minha mente se entremeteu numa viagem pela Administração, bem como pelas ciências que a auxiliam a fim de que qualquer uma delas me respondesse ao dilema que intitula esse relato. Afinal de contas, indivíduos reativos e proativos assim o são por perfil ou treinamento? É claro que treinar alguém não anula o que ele traz de berço, contudo ninguém pode negar a eficácia de uma boa orientação mas, para deixar as coisas bem mais claras, vamos a alguns conceitos:
Indivíduos proativos são aqueles que, espontaneamente, buscam por mudanças em seu ambiente de trabalho, solucionando e antecipando problemas. Já os reativos são aqueles que pensam e atuam de acordo com padrões de causa e efeito. No episódio que citei no início do texto, um individuo proativo teria, como falei, resolvido a situação com um pedaço de fita adesiva ou pelo menos acionado seu superior imediato com o intuito de que este lhe apresentasse uma solução ou que pelo menos o orientasse para tanto. Agora vejamos: quem é proativo já “nasceu” assim ou foi treinado para tal? Cabe o mesmo questionamento no que tange aos reativos.

Acredito que, assim como a lei da Gravidade é aquela que nos mantem com os pés fincados no chão, ser reativo é a tendência de todo ser humano. Quando nascemos, só somos capazes de realizar aquilo que já, por assim dizer, nascemos “sabendo” (instinto). Por exemplo, chorar. Um bebê quando chora é porque está com fome, com frio, com dor, calor e por aí vai. Há mães que afirmam (e eu concordo) que existe um tipo de choro para cada situação, mas o fato é que o bebê já nasce ciente de que, através do choro, suas necessidades serão entendidas e atendidas. Nesse aspecto, um administrador deve ter a consciência de que, tal como ele, seus subordinados também trarão consigo algo de berço e esses, por assim dizer, dados não podem ser quantificados sendo essa análise pertencente ao campo da subjetividade e é aí que entra o valor e a atenção que se dá ao processo de recrutamento e seleção de um novo empregado. Há gestores que escolhem um novo colaborador apenas levando em consideração a complexidade das tarefas a serem realizadas e acabam contratando, por exemplo, “gente que não gosta de gente para trabalhar com gente” e o resultado disso é um péssimo atendimento com reflexo nos lucros, porém acredito que não só eu, mas uma boa gama de pessoas poderia enumerar a existência de vários estabelecimentos empresariais cujo atendimento é péssimo, contudo recebem um bom número de pessoas por dia e quanto a isso o que posso afirmar-lhes é que este tipo de lugar tem fregueses e não clientes. O freguês é aquele que frequenta e/ou compra em um determinado lugar em razão de sua localidade. Já o cliente é aquele que desenvolve com o estabelecimento uma relação de fidelidade a seu produto e/ou serviço sem levar em consideração a sua localidade ou grau de dificuldade a que está sujeito para ter acesso aos mesmos. Assim sendo, meus caros, estabelecimentos que não estão nem aí para o quesito qualidade por achar que “o queijo nunca irá se acabar” (e quem quiser melhor entender o que essa expressão significa recomendo a leitura do livro ‘Quem mexeu no meu queijo’) podem ficar cientes de que os fregueses sumirão a partir do momento que tiverem outra opção.

A reatividade, como já observado, pode ser considerada como intrínseca ao homem, mas o treinamento pode mudar isso. Treinar uma pessoa é educa-la a curto prazo com o fito de que esta adquira conhecimentos, habilidades e, o mais importante: atitudes! Meus caros, na humilde opinião desta bacharelanda, funcionário reativo é funcionário mal treinado. Ainda vigora no mundo empresarial a ideia enganosa de que treinamento é despesa, mas não, treinamento é investimento! Seu objetivo primaz é contribuir para as metas finais da organização. Administrar é gerir pessoas e processos e não há nada que melhor contribua para o sucesso de um empreendimento senão o fator humano e por que não concordar com os que defendem que os recursos humanos é o mais valioso ativo do qual uma organização pode dispor?
 
O episódio narrado no início deste artigo teria tido outro final se alguém tivesse se preocupado em melhor preparar aquele jovem para uma ocasião como esta, inclusive concedendo-lhe certa margem de autonomia. Contratar um indivíduo com perfil proativo é bom, todavia treina-lo com esse intuito é melhor ainda.  

Deus Atende Desejos ou Necessidades?