Alice serviu-se de uma caneca de
café e foi degusta-la á janela. O ocaso era seu momento preferido do dia, não
só pelo amarelo-rubro de que se pintava o céu. Era a hora do rush, momento em que
as principais vias da cidade se tornariam um imenso lençol de luzes vermelhas.
Com um risinho no canto da boca, Alice ponderava ser ela a única pessoa a ver
poesia naquilo, mas era o jeito Alice de ser: viver à margem do comportamento
urbano. Para ela era prazeroso sentir o cheiro do mar ao cruzar a Avenida
Contorno, mesmo com o coletivo lotado.
Terminada a bebida, a mulher
depositou a caneca a seus pés e prosseguiu em apreciar a paisagem. Residia em
um bairro classe média e àquela hora as cenas mais frequentes eram os pais de
família retornando de mais um dia de labuta e a molecada, sempre aos bandos,
voltando da padaria. Vislumbrar aquelas embalagens brancas provocava-lhe um
sentimento nostálgico – fora criança no tempo em que os sacos de pão eram de
papel. Também em sua época, professores eram mais respeitados, dava-se valor à
virgindade e não se pensava em transformar sandices em lei. Essa conjectura, tal
como outrora, de igual modo a fez recordar-se de que houve um tempo em que a
filosofia de alguém se pautava muito mais nas coisas que dizia do que em seu
comportamento. E o que dizer do falar?! “Ah, o falar!” – suspirou ela – Arte
tão deficiente entre aqueles que formam os atuais grupos de referência. Como seriam
tais pessoas aos olhos de Aristóteles, Demóstenes e Cícero, famosos oradores?
Verbosidade, aliás, assim pensava Alice, seguindo a mesma linha de raciocínio,
era a menor das preocupações da sociedade atual. Carecia-se mais de valores.
Importantes pilares da sociedade vêm sendo removidos sob a desculpa de que faz
necessária a quebra de paradigmas e os que percebem o embuste vem sendo
perseguidos, tachados de retrógrados intolerantes, preconceituosos; jogados aos
leões pela mídia.
Um dia, alguém disse que os laços
estavam muito apertados e é verdade. É só fazer um pequeno tour pela História e
lá constatar que gerações inteiras foram, por assim dizer, “castradas” por
causa do advento de ideologias embasadas em distorções da verdade,
convenientemente vendidas como modelos de moral e bons costumes. As motivações
para tais práticas foram, sobretudo, políticas e algumas delas infelizmente
perduram até hoje.
Alice sentia-se indefesa e
impotente diante de tal quadro ao passo que pensava se realmente havia o que
ser feito, pois o mesmo povo que clama por justiça, tem sede de sangue, o mesmo
povo que exige honestidade por parte de seus parlamentares tem por “otário” o
seu semelhante que se recusa a participar daquele “negociozinho”, que por mais insignificante que pareça ser, não perde seu cunho escuso.
Se Alice desafiada fosse a nomear
tal fenômeno e porque não dizer enfermidade que tem empurrado a coletividade ao
abismo, não precisaria inventar nenhum vocábulo novo. Tratava-se de hedonismo e
nada mais.
Cansada de fazer inferências, a mulher de
estatura mediana decidiu deixar a janela, porém deteve-se mais um pouco por
conta de escutar alguém gritar o seu nome. Seu rosto irradiou-se ao ver que se
tratava de sua vizinha da frente que, após as gentilezas de praxe,
perguntou-lhe quais seus planos para aquela noite, entretanto tomar ciência dos
mesmos causou-lhe espanto, pois não entendeu o que levou a outra a marcar um compromisso
daquela natureza bem na hora da novela.
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