domingo, 22 de abril de 2012

O perdão é uma escolha


E, quando estiverdes orando, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém, para que vosso Pai, que está nos céus, vos perdoe as nossas ofensas. Mas, se vós não perdoardes, também vosso pai, que está nos céus, vos não perdoará as vossas ofensas (Mc. 11-25;26).


Há um número muito grande de pessoas, de crentes inclusive, que acha que o perdão é uma imensa borracha. Esta, quando necessário, irá agir na parte do nosso cérebro responsável pelo acúmulo de memórias, e "apagar" o mal que esta ou aquela pessoa nos fez. Ledo engano! Isso nunca irá acontecer. Na verdade, aquela lembrança depois de um tempo, deixará de incomodar, contudo devemos fazer uma escolha para que isso ocorra. Sim, devemos escolher que esta recordação cesse de nos atormentar. De outra forma, o perdão não será liberado e passaremos a carregar um ou vários fardos n'alma. Vejamos:

A passagem bíblica que antecede o começo deste relato, nos ensina que, para recebermos perdão, necessário é que também o façamos. A  Bíblia de estudos que utilizo informa que o termo perdoar e seus derivados aparece 62 vezes em diversas passagens espalhadas pela antiga e nova aliança e o exame de algumas delas nos faz notar que algo bom ocorre toda vez que ele se manifesta. Bons exemplos estão em Marcos capítulo 2 dos versos 1 ao 12º e depois um pouco mais adiante, em Lucas capítulo 07, nos versículos de 36 ao 49. No primeiro exemplo, visualizamos a história do paralítico de Cafarnaum. Cristo entende que havia naquele homem faltas a serem perdoadas e antes de lhe ordenar levantar, tomar o seu leito e ir para casa, lhe diz: "... Perdoados estão os teus pecados." Coisa parecida pode ser vislumbrada na passagem citada do livro de Lucas onde se registra o episódio em que uma pecadora unge os pés de Jesus. Note-se que a referida mulher não vinha sendo afligida por um mal físico, porém mazelas psicológicas, resultantes de suas más escolhas lhe tolhiam a paz. Salientemos ainda que ambos os personagens foram alcançados pelo mal por causa do pecado, mas enxerguemos o bem que receberam ao serem remidos. É esse bem que Deus quer que concedamos ao perdoar, e também, de certa forma, usufruir dele, mas como? Novamente, a própria Bíblia Sagrada nos traz a resposta: em Provérbios 4-23. Está escrito: " Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, por que dele procedem as saídas da vida" e, neste mesmo livro, no capítulo 15, verso 13, encontramos: "O coração alegre aformoseia o rosto, mas, pela dor do coração, o espírito se abate." Guardar o coração também significa filtrar o que vai ser alojado dentro dele, se não tal e qual a afirmação do capítulo 15, o espírito ficará abatido. É horrível quando somos traídos, machucados, afrontados e coisas afins, mas é terrível também para nossa saúde quando acumulamos essas raízes de amargura dentro de nós. Tais coisas podem nos levar tanto à morte física quanto à espiritual e se não nos "matar" pode nos condicionar a um estado vegetativo em que estaremos impedidos de viver uma vida em plenitude por causa de tanta sujeira.

Sou cristã há dez anos, mas só entendi que perdoar é uma escolha e não "a grande borracha" anos depois após sofrer uma decepção amorosa. A dor da perda e da traição me atormentou durante dias e neste este interstício de tempo clamei aos Céus por ajuda. Eu necessitava que Deus levasse embora aquela dor, contudo o Senhor, em sua infinita sabedoria, não permite que saiamos de mãos vazias de situação alguma, e através de um livro cujo objeto era as armas espirituais e seu correto uso, ensinou-me essa importante lição. Lembro-me como se fosse hoje: eu estava no ônibus, a caminho do trabalho e, como de costume, aproveitava o tempo do trajeto para ler ao me deparar com esta parte do impresso em que o autor relata uma experiência particular em que resolve perdoar o sócio que o havia passado para trás. Ele ainda passou um tempo torturado pela raiva e pelo ressentimento, principalmente porque o que sofrera deixara-o em péssima situação financeira, mas assim como Jó, ele foi resiliente e prosperou em sua decisão e não tardou para que a recompensa chegasse. Sem pensar duas vezes, fechei meus olhos e disse a Deus que naquele instante eu estava escolhendo desistir do ressentimento para com a pessoa que me traiu, estendendo minha decisão àqueles que o ajudaram na empreitada. Acreditem ou não, mas ao terminar a oração senti uma onda de calor percorrer o meu corpo e me trazer uma maravilhosa sensação de bem-estar. Foi algo tão  especial que fechei o livro e passei o resto da viagem em êxtase. É claro que, semelhantemente ao autor do livro, a mágoa e o ressentimento e tudo mais que nos aflige quando nosso orgulho é ferido apareceram em certas ocasiões para me assombrar, mas toda vez que isso acontecia, eu falava com Deus, por vezes entre lágrimas, que não ia voltar atrás em minha resolução e o Senhor me premiou com a cura. Hoje posso dizer seguramente que liberei perdão para estas pessoas e estas lembranças não me incomodam mais. O perdão não agiu como borracha e sim como antídoto.


terça-feira, 17 de abril de 2012

Paraíso





Parado em um momento no tempo, tive tempo para sair de mim. Viajei a um lugar paradisíaco e lá encontrei seres mágicos. Uma criança de cabelos amarelos me teceu uma coroa de flores e depois atravessamos um rio cujas águas eram mui cristalinas.

Do outro lado da margem, outros seres fabulosos me fizeram festa e com eles me alegrei até fadigar. Depois disso, dormi entre as estrelas. Meu travesseiro era de nuvens. Não sonhei. Adormeci e despertei ao tempo de uma piscadela. Vi o sol mais amarelo a dar giros pelo firmamento a arrancar gargalhadas dos crisântemos e me pus a pensar que lugar seria aquele. Alguém me respondeu que eu me encontrava em meu interior e aquela era minha literatura. Minha coroa outrora de flores agora era do ouro mais fino e as mais preciosas pedras a adornavam, sim! Ali eu era o rei! Aquele momento no tempo me arrebatou os sentidos e me trouxe para junto de minhas criaturas, meus súditos leais que nunca padeceram tristeza e tampouco conhecem o pranto; um lugar onde o vento canta e as colinas lhe fazem coro, onde o alimento vem da novidade da terra e a chuva pinta a grama de um verde mais forte ressaltando o cheiro bom da natureza e onde a cerejeira dá suas flores na estação certa.

Não desejo eu voltar à realidade onde tenho que usar máscaras. Quero ser eu. Quero cruzar os céus descalço e de calças curtas como em meus folguedos de menino. Quero ser um artesão. Quero tirar da bruta madeira a sua forma. Quero dedilhar a harpa e atrair as musas com minha canção. Quero ver seus sedosos vestidos bailando ao sabor da brisa. Quero contemplar o ir e vir do passaredo nas matas e florestas.

Alguém me toca o ombro e me deparo com meu reflexo. É a razão a me despertar e a insistir que tenho que voltar. O ocaso se aproxima. Logo, pontos vermelhos aparecerão aos pares e se unirão em milhares a fim de cobrir a extensa trilha. Minhas mãos terão que tocar a gélida realidade e serei forçado a usar minha ferramenta onde não posso divagar e nem dar vida a meus encantos. Ali, sem misericórdia, haverá choro e ranger de dentes.

Volto a sentir meus pés no cinzento e maltratado assoalho. O momento no tempo se foi e sei que outros virão. Não estou no campo esquecido, sei que alguém me observa enquanto produzo meus versos entre as malhadas e Ele é aquele que não está ao alcance dos olhos, que não permitiu que o seu Santo visse a corrupção e de igual forma não deixará que eu sofra o dano da segunda morte.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Tragicomédia

(Publicado na coletânea "A Miragem" lançada em 1997)





Severino encontrava-se rindo. Grande novidade! Severino nunca parava de sorrir. Estivesse chovendo ou fazendo sol. Não tinha esposa, filhos, família, escola de samba ou sequer time de coração. Seus colegas diziam que era por isso que ele vivia tão feliz: nenhuma dessas coisas o aborrecia. O mesmo não podia se afirmar do Zé Raimundo. Como sofria o pobre! Seu time nunca ganhava, sua esposa vivia grávida, seu salário nunca aumentava. Encontrava-se sempre carrancudo. Para ele, a tarefa mais difícil do dia era chegar em seu ambiente de trabalho e encontrar o Severino com aquele maldito sorriso no rosto. Que tortura! Na mente do Zé, Severino só vivia para atormenta-lo. Não só com aquela cara de feliz, como também com as perguntas de sempre: E a família, Zé? "Crescendo!" "E o time, Zé?" "Perdendo". Essa era a sua rotina: fazer carranca e odiar o Severino.

O tempo foi passando, até que um dia o chefe chamou o Zé para conversar. Sabe como é a situação, os clientes reclamando da carranca do Zé. Demitido por fazer carranca?! E os filhos para criar, como fica?! Por que o Zé Raimundo?! Por que não o Severino?! Severino não traz problemas pro trabalho. E que problema o Severino tem?! Não houve jeito. O Zé foi mesmo despedido.

Severino ficou  sabendo da demissão do Zé. Sentiu pena. Na hora da saída, barrou-o à porta e, evidentemente, sorrindo, tentou consolar o "amigo". Recebeu um murro na cara como resposta. Caiu e mesmo no chão, foi agredido novamente com um chute. Levantou-se cambaleando, pediu clemência, desculpou-se, levou mais porrada e mais chutes. Tombou novamente inerte. O Zé tocou-o: morto. Pela primeira vez, o Zé sorriu.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Paixão de Coletivo

E o vento brincava com seus cabelos. Tão negros... Tão compridos... Ela lia Descartes. Tão culta... Tão séria... Sua pele era rosada e seus traços delicados. Seria também de anjo o seu nome?

Decidi reputa-la por donzela; uma virgem da época em que as muitas saias lhe cobriam a nudez, mas que nada necessitava revelar a fim de levar o mais valente dos homens a por ela combater até o último sopro de vida. Seu cheiro era de jasmim, a calça escura e a blusa alva, o batom: rosa cereja. Entre uma parada e outra, o baile do vento em suas madeixas dava uma pausa e recomeçava enquanto Descartes ela lia.  Dedos finos... Toque sutil? Pianista? Talvez... Ela é linda! Estranha, minha conhecida, de segunda a sexta, por quarenta minutos, só minha. Musa dos versos que eu nunca lhe declamei; tema do cântico de amor que nunca entoei; mulher que em meus sonhos se aninha em meus braços. Descartes ela lê, meu rival; digno e detentor de toda sua atenção, que a faz surda às batidas de meu coração. Que a impede de perceber que meus lábios se mexem, porém nenhuma palavra sai.

Uns procuram a beleza na imensidão do oceano, outros contemplam o céu. Eu só preciso olhar pra ela. Seus olhos são escuros, incógnitos. Pobre coitado homem eu sou! Apaixonado, cativo de tão majestosa senhorinha. Sua voz ainda não ouvi, tampouco apreciei seu sorriso, senão em meus devaneios, em momentos febris onde sou privado de minha razão e no mesmo contexto abandonado pela lógica. Me crucificariam os racionais por sustentar tão insensato sentimento que me machuca ao tempo em que motiva a viver. "Sou teu humilde servo, mulher!" - grita meu coração, em vão. Ela não me ouve, muito menos me vê, seu devotado amante em pé a seu lado. Seus preferidos são os sábios: Neruda, Sócrates, Piaget, mas hoje Descartes ela lê, afortunado escolhido. Que inveja do pouco volumoso impresso acomodado entre seus dedos. Do Olimpo, o filho de Afrodite nos observa e de meu desassossego retira seu gozo. Travesso menino cuja flechada em cheio me atingiu.

Hora de saltar, minha agonia. Me arrasto cabisbaixo por entre os outros passageiros. À porta de saída, uma última olhada para trás. "Adeus, meu amor, tenha um bom dia!" - digo-lhe telepaticamente, sem esperar resposta.

domingo, 1 de abril de 2012

E o pensador...

E o pensador se pôs a pensar. 

Hiper produzir é o que faz de melhor a sua mente privilegiada, para não chamar de poderosa, uma vez que o ilustre analista não se sente a vontade com o adjetivo.

Encontrava-se ele àquela hora do dia em movimento. O coletivo quase vazio se dirigia a uma das partes mais nobres da cidade e o corpo robusto do protagonista se sacudia pelas ruas e avenidas exageradamente marcadas por lombadas. O sacolejar quase que não o incomodava pois, como sempre, sua atenção estava voltada para um impresso. Em seu colo pairava talvez a mais famosa obra de um filósofo francês que, assim como ele, teve sede de saber. Seu humor ao conceber tal relato podia ser comparado ao de Salomão quando da confecção do Livro de Eclesiastes. À medida que passava as páginas ia o peito do quarentão sendo tomado pela compaixão. Teve pena daquele sábio que dispendeu toda a sua existência a procura de uma fonte pura e imaculada de saber e não se deu conta que tal coisa não podia ser encontrada senão naquele que criou todas as coisas, o Deus Todo-Poderoso, a quem o autor conhecera de ouvir falar, mas que infelizmente lhe fora apresentado por uma teologia distorcida, corrompida e prostituída. Pena ter ele se escandalizado e não ter clamado aos céus por sabedoria, pois com certeza a teria recebido. O Livro dos livros nos assegura que o Bom pastor se achega à todo aquele que a ele se achegar e, em seguida, permite ser conhecido face a face.

Ao saltar do veículo tricolor, o pensador se deteve por alguns instantes estudando o cenário a seu redor. Ainda era bem tímido o número de pessoas presentes ali. O céu esboçava um azul intenso sem qualquer mancha de nuvem e o vento trazia as suas narinas um forte cheiro de maresia. 

Sua presença ali tinha um porquê: continuar sua introspectiva viagem; investir em si mesmo sem se preocupar com qualquer retorno financeiro. Era preciso. Era preciso fazer menos inferências e passar às indagações, mas não tinha que inquirir a si mesmo. Poucos eram os seus questionamentos agora. Seu eu cego já não lhe era tão desconhecido. O cientista (caso mereça ele tal título) vinha gozando de certa satisfação pelos degraus que já galgara, porém seu crescimento dependia agora de esclarecer alguns pontos  em seu círculo social composto por criaturas portadoras de suas próprias patologias. Pensador se compadeceu deles por diversas vezes e em várias ocasiões lhes ofereceu os seus préstimos de amigo. Os resultados foram variados e indignos de considerações, contudo o aprendiz de sábio não deixou de aprender algumas lições.

Sua pele hoje exibe o viço da liberdade; da liberdade de alma, da quebra das correntes da opinião alheia. Quão satisfatório vinha sendo não temer o incompreensivo e de tal maneira o que se revoltou com suas virtudes. Ele, que um dia foi menino, agora cresceu e que um dia foi cego, mas agora vê.

Deus Atende Desejos ou Necessidades?