quinta-feira, 5 de abril de 2012

Paixão de Coletivo

E o vento brincava com seus cabelos. Tão negros... Tão compridos... Ela lia Descartes. Tão culta... Tão séria... Sua pele era rosada e seus traços delicados. Seria também de anjo o seu nome?

Decidi reputa-la por donzela; uma virgem da época em que as muitas saias lhe cobriam a nudez, mas que nada necessitava revelar a fim de levar o mais valente dos homens a por ela combater até o último sopro de vida. Seu cheiro era de jasmim, a calça escura e a blusa alva, o batom: rosa cereja. Entre uma parada e outra, o baile do vento em suas madeixas dava uma pausa e recomeçava enquanto Descartes ela lia.  Dedos finos... Toque sutil? Pianista? Talvez... Ela é linda! Estranha, minha conhecida, de segunda a sexta, por quarenta minutos, só minha. Musa dos versos que eu nunca lhe declamei; tema do cântico de amor que nunca entoei; mulher que em meus sonhos se aninha em meus braços. Descartes ela lê, meu rival; digno e detentor de toda sua atenção, que a faz surda às batidas de meu coração. Que a impede de perceber que meus lábios se mexem, porém nenhuma palavra sai.

Uns procuram a beleza na imensidão do oceano, outros contemplam o céu. Eu só preciso olhar pra ela. Seus olhos são escuros, incógnitos. Pobre coitado homem eu sou! Apaixonado, cativo de tão majestosa senhorinha. Sua voz ainda não ouvi, tampouco apreciei seu sorriso, senão em meus devaneios, em momentos febris onde sou privado de minha razão e no mesmo contexto abandonado pela lógica. Me crucificariam os racionais por sustentar tão insensato sentimento que me machuca ao tempo em que motiva a viver. "Sou teu humilde servo, mulher!" - grita meu coração, em vão. Ela não me ouve, muito menos me vê, seu devotado amante em pé a seu lado. Seus preferidos são os sábios: Neruda, Sócrates, Piaget, mas hoje Descartes ela lê, afortunado escolhido. Que inveja do pouco volumoso impresso acomodado entre seus dedos. Do Olimpo, o filho de Afrodite nos observa e de meu desassossego retira seu gozo. Travesso menino cuja flechada em cheio me atingiu.

Hora de saltar, minha agonia. Me arrasto cabisbaixo por entre os outros passageiros. À porta de saída, uma última olhada para trás. "Adeus, meu amor, tenha um bom dia!" - digo-lhe telepaticamente, sem esperar resposta.

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