sexta-feira, 16 de março de 2012

O duelo



Não havia no bairro da Cidade Nova quem não conhecesse a Avenida Vinte e Sete. O charmoso logradouro estilo condomínio fechado era formado de vinte e sete unidades, contando com a do senhorio, Seu Santinho, casado com D. Conchinha e pai de Maria Rita.
A Rita era moça prendada, temente a Deus e estudiosa. Dona Conchinha gabava as altas notas da menina nas ocasiões em que achava “caridoso” de sua parte, debruçar-se sobre o parapeito da janela da sala e tagarelar por algumas horas com os inquilinos. Sonhava a distinta senhora casar a filha com um homem rico, mas, para seu infortúnio, a jovem apaixonou-se por um professor.
Cássio Hélio, vinte e nove anos, professor da rede estadual de ensino, formado em Letras, ocupante da casa 13 e agora também dono do coração de Maria Rita.
O mestre bem intencionado apresentou-se aos pais da donzela como um saído dos romances de Alencar e para afastar de si a sombria ameaça de uma futura sogra desgostosa com o genro, rico em conhecimento, mas de bolso vazio, valeu-se da prosa de Machado.
Vencida a barreira da genitora caçadora de dotes, desfilava o casal pela singular avenida a destilar o mútuo sentimento aos olhos zombeteiros, curiosos, e, até mesmo, invejosos da vizinhança, entretanto mal sabiam os pombinhos que certo acontecimento do passado viria atrapalhar-lhes a felicidade: antes de Cássio, Rita fora cortejada por João Trancoso, 1,95 de altura, baiano legitimo, mestrado nas artes da marcenaria, ofício que herdara do pai e este de seu avô.
O morador da casa dezessete apaixonara-se por Rita e, à época, na esperança de ser correspondido, mimou-a com presentes e cercou-a de cavalheirismos, porém a oposição por parte de D. Conchinha foi mais forte. João deu-se por vencido, mas continuou a amá-la em secreto. Indignado com a descoberta do romance entre o objeto de sua afeição e o simplório educador irou-se e foi ter com seu algoz.
Trancoso foi recebido com surpresa por Cássio. Ritinha, em sua honestidade, já havia lhe confessado que passara um tempo atraída pelos dotes físicos do rapaz e também por seu bronzeado made in Ilha de Itaparica. Naquele instante, porém, o professor comportou-se como todo bom anfitrião e o convidou a entrar e sentar-se.
O marceneiro, após rejeitar todas as educadas propostas feitas por Cássio, revelou o motivo de sua visita: tinha ido exigir que o vizinho rompesse com a namorada, pois em seu entendimento era com ele que esta se encontrava compromissada, uma vez que vinha ele esperando pacientemente pelo seu amadurecimento.
O letrado nada lhe respondeu a princípio. Estudou-lhe as feições por alguns instantes, ponderou quantos dentes perderia no caso de o vizinho reagir com violência a sua resposta e, juntando toda a coragem que o zelo por sua imagem de macho lhe oferecera naquele momento, convidou educadamente João a retirar-se.  Trancoso não viu outra alternativa senão lhe propor um duelo. Se perdesse, jurou que mudaria de endereço e nunca mais importunaria o casal. Cássio concordou e o profissional da madeira retirou-se radiante.
Não tardou para que a notícia do confronto se espalhasse pelas adjacências, mas ninguém entendeu o porquê de Cássio ter aceitado o desafio. As hipóteses surgiram aos montes, cada uma mais esdrúxula que a outra.  Rita implorou para que o noivo voltasse atrás na decisão tomada, porém Cássio estava irredutível. Tinha consciência de que era fisicamente inferior a João, mas algo maior estava em jogo. Sua noiva não compreendia sua veia romântica alimentada por Tristão e Isolda, Romeu e Julieta e por tantos outros famosos casais da literatura mundial.
No dia do confronto os curiosos começaram a concentra-se horas antes do horário previamente combinado entre os guerreiros. Era domingo. Partidários de ambos os lados discutiam calorosamente seus pontos de vista e a molecada matava o tempo disputando um babinha com uma bola improvisada.
João e Cássio chegaram quase que ao mesmo tempo fazendo calar o vendedor de picolé e o rapaz da água mineral que gritavam o mais alto que podiam o preço de suas mercadorias. Dona Conchinha e Seu Santinho também se fizeram presentes em solidariedade à filha que já não tinha mais lágrimas para derramar. João não trouxe ninguém, mas sua torcida era indiscutivelmente maior.
Faltando um minuto para as três, o Seu Osmar, eleito como juiz do combate, participou a todos os presentes as regras da luta. Terminada a tarefa, João despiu a camisa do seu time de coração, exibindo seu dorso avantajado. Cássio trajava jeans e camisa pólo. Seu preparo se resumiu a retirar os óculos.
Em seguida, o árbitro conduziu os oponentes ao centro da arena e cuidou para que os dois apertassem as mãos. Depois, apitou e declarou por iniciada a luta. João elevou o punho e desferiu o primeiro soco. Cássio desvia-se do golpe e passa a saltar e a girar em torno de seu oponente. Trancoso tonteia, sente o estômago embrulhar, lembra-se de quando era moleque. Fugia das brincadeiras de roda; no parquinho mantinha-se longe do carrossel e da roda gigante. Um gosto estranho salta-lhe á boca, seu esôfago queima, vômito?! Não! Sua mente volta para a briga e ele fecha os olhos e espera que o cenário diante de si se estabilize. A multidão protesta. Trancoso abre os olhos e acerta a figura embaçada a sua frente. Cássio cambaleia, o povo vibra e João se alegra escarnecendo do adversário.
Soco nº. 3: o nariz de Cássio sangra, a multidão vibra novamente excitada pelo líquido vermelho que mancha a camisa do educador e faz Rita perder os sentidos. Trancoso assiste a donzela ser amparada pelos pais, se lembra que seu inimigo ainda está de pé e avança. Cássio começa a saltar novamente e João tenta acertá-lo mais uma vez, sem sucesso.
Golpe nº. 4: pra fora! João se enfurece, a adrenalina aumenta. Cinco, seis, hum! João é golpeado, o ódio o cega e... Pimba! Uma pernada derruba Cássio e João pensa em chutá-lo, mas Seu Osmar não deixa, é contra as regras, entretanto xingar era permitido e João “desce” o palavreado! Cássio vira de um lado, vira de outro, as pernas não obedecem, levantar está difícil, a multidão incentiva: tira o sangue dele! Não deixa ele levar sua mulher! Sim, Rita! Lábios doces, pele suave e mãos delicadas, dona do ventre que carregará seus filhos, nobre reino conquistado pela palavra. Sim, a palavra! A palavra tem poder! Ó João, pobre João! Garanhão das meninas, fugitivo da escola, inimigo dos livros, quem são os teus músculos frente ao poder dos grandes mestres da literatura brasileira?! Escrever-te-ei como a Caminha ao rei de Portugal.
Lima Barreto, Érico Veríssimo, Jorge Amado. As pernas de Cássio se recuperam e ele se ergue. A multidão delira e o educador passa a discursar. João ri, mas o professor continua; gesticula e declama. O silêncio vai se apoderando de todos, em efeito dominó.
João estarrece e Cássio se empolga: Padre Antonio Vieira: “se o sal não salga...” Trancoso protesta; o erudito não se intimida e continua: “Olhai os lírios do campo”. Para! - pede o marceneiro.
Mãos nos ouvidos, peito apertado. Aloísio Azevedo, o mulato, blasfêmia! É a ignorância de João. Aquilo não é ser homem no sentido de ser “macho”. As palavras lhe penetram, lhe perturbam, lhe enfraquecem, não! Para! É covardia! A multidão chora emocionada e de repente alguém bate palmas, outro faz o mesmo. Outro, outro e mais outro. João limpa o suor e se acabrunha, pensa em correr, mas macho não corre! As palmas continuam e João amolece. Seu Osmar apita e ergue o braço do campeão. Rita, já desperta, beija apaixonadamente seu herói. Trancoso dá dois passos e congela. As palavras de protesto morrem em sua garganta. Não queria que acabasse assim mas acabou. Acabou, acabou, acabou! - alguém parafraseia aquele famoso locutor. Derrota: Cássio sobre os ombros do Tio do mingau. Desfile do campeão, som do timbal. Ombros caídos. Recolhe-se o derrotado.

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