Todo mundo ficou olhando a vizinha da Rua Detrás a se
locomover ladeira abaixo com aquele enorme saco de lixo nas costas. Ninguém
estava entendendo nada, muito menos meus amigos e eu, que interrompemos nossa
pelada no instante em que ela cruzou o nosso campinho. Os comentários foram de
todos os tipos, inclusive a surpresa de ver uma mulher carregando tamanho peso,
porém eu confesso que a princípio meu primeiro pensamento foi imaginar se no
meio daquilo tudo tivesse algo que a gente pudesse trocar por algodão doce, o
que, aliás, não pude deixar de compartilhar com a turma e, após uma rápida
deliberação, resolvemos segui-la discretamente e aguardar ela lançar o volume
lá no “cestão”, apelido dado ao recipiente que armazenava todo o descarte das
caixas menores antes de o carro de lixo fazer a coleta.
No caminho, alguns rapazes foram se oferecendo para ajudar,
porém ela recusou auxílio. Não dava para escutar direito qual era sua desculpa
diante de cada recusa, entretanto nos pareceu que alegava ser o conteúdo do saco
algo parecido com lixo tóxico. Ao ouvirmos isso, meus amigos e eu até pensamos
em desistir, mas quando imaginávamos o algodão doce derretendo em nossas bocas
ao passo que pintava as nossas línguas de rosa, nos fazia recuperar a coragem e
seguir em frente. Mais adiante, contudo nos vimos diante de um novo impasse,
pois para nossa surpresa, a vizinha, não entrou na rua que fazia esquina com a
banca do Seu Geninho. Quase a perdemos de vista devido ao tempo que levamos
parados tentando adivinhar qual seria então o seu destino.
Algum tempo e muitos passos depois, finalmente chegamos ao
local do descarte. Camuflamos-nos por detrás das ruínas do local onde um dia
funcionara uma locadora de veículos, demolida com o fito de abrir espaço para a
nova avenida. A vizinha então acocorou-se e passou a esvaziar o saco, porém não
do modo como geralmente se trata coisas de que não se deseja mais. Ela ia
tirando cada idem bem devagarzinho de dentro da embalagem e depois os arrumou
como se pusesse a mesa para um banquete. Eu e meus amigos nos entreolhamos
confusos e daí sugeri que fôssemos embora, uma vez que eu já deixara de
vislumbrar qualquer chance de lucro naquela empreitada, todavia o Ubaldo, de
nós três o mais velho, ordenou que nos calássemos e eu, que nunca fui muito de
acatar ordens, senão de meus pais, quis pestanejar, entretanto o grito emitido
por Naldinho, nosso caçula nos forçou a centrarmos novamente a devida atenção
ao que se sucedia e foi aí que, para espanto geral, percebemos que a vizinha se
preparava para tocar fogo em tudo. Sem saber o que dizer, levei ambas as mãos à
cabeça em sinal de desespero e o Ubaldo fez o mesmo, exclamando : “Oh meu
Deus!” Naldinho, que além de pequeno era deveras afoito partiu como um raio
para junto da mulher e começou a suplicar-lhe para não fazer aquilo. Juntamos-nos
a ele, contudo não aderimos a súplica. Passado esse instante, ela fez com que
nos déssemos as mãos e nos explicou que tudo aquilo que víamos, apenas com
nossos olhos naturais, eram fardos os quais ela decidira não mais carregar:
dores, desilusões, promessas quebradas, falsas promessas, amores perdidos,
paixões não correspondidas, traumas.
Ao final da narrativa, Naldinho, tomado de intensa compaixão,
não se opôs mais ao seu intento e a mulher, estranhamente contente com aquilo,
lançou mão mais uma vez do pavio que improvisara com uma folha de papel torcido
e foi acendendo as labaredas. Ficamos ali durante não sei quanto tempo
assistindo o fogo a tudo consumir e depois a acompanhamos até a porta de casa.
Na manhã seguinte, mal tinha o sol despontado no céu, quando
acordei com minha mãe me sacudindo e me avisando que os meninos estavam a minha
espera. Disparei em direção à sala ignorando completamente o seu aviso para que
eu assim não o fizesse descalço e Naldinho, ao me ver, me abraçou em prantos
escondendo seu rosto rechonchudo em minha barriga. Senti um grande nó se formar
em minha garganta e fitei Ubaldo. Ele balançou discretamente a cabeça em sinal
positivo confirmando o que eu em silêncio lhe indaguei.
Chegamos à Rua Detrás respectivamente acompanhados de nossos
pais e nosso semblante decaiu ainda mais ao depararmos com a caixa fúnebre no
centro do cômodo abarrotado de gente. De uma forma mórbida, havíamos virado
celebridade, pois afinal tínhamos sido os últimos a vê-la com vida. Nunca me
esqueço de quão sereno estava seu rosto envolto naquelas flores.
Amarguei juntamente com meus amigos ainda por muitos dias a esdrúxula
dor que nos sobreveio por conta de sua partida. Quando a saudade era demais
íamos ás escondidas (por causa da mãe do Naldinho que, por ser um tanto supersticiosa,
proibira-o de faze-lo) até o local onde ocorrera nossa aventura e ficávamos lá,
olhando para o nada por algumas horas ou então juntávamos uns gravetos e
fazíamos uma fogueirinha a fim de passar o tempo vendo as chamas crepitando. Era
bonito de se olhar as labaredas mudando de cor e balançando ao sabor do vento.
Hoje, toda vez que me recordo dessa história, assim procedo
com a consciência de que aquele episódio fora nosso primeiro contato com o
mundo adulto. Passei por dores, desilusões, quebrei promessas, bem como simulei
algumas; pranteei por amores perdidos, paixões não correspondidas e traumas,
mas ao cabo de alguns anos, achei por bem fazer uma fogueira como aquela, porém
a fiz em meu coração.
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