sexta-feira, 22 de junho de 2012

Aquele Estranho

Por entre esses muitos caminhos da vida, conheci alguém. Seu nome eu nunca soube. Ele era mais velho do que eu. Sua pele era parda, seus cabelos lisos e escuros lhe caiam à altura do pescoço. Era alto e magro, mas atraente. Seus olhos: verde-esmeralda.

Nossa amizade começou com uma troca de gentilezas, dessas corriqueiras entre estranhos. Foi aí que nossos olhares se cruzaram e algo diferente nasceu em meio a uma série de encontros nada casuais. Ficamos um bom tempo nos admirando de longe. Meus olhares eram furtivos, os dele, diretos. Assim ficamos até que ele veio a mim, como convém aos cavalheiros.

Conversávamos de tudo um pouco, mas era a Literatura que dominava nossos diálogos. Ele era graduado e confessou-me dias mais tarde que dispendera dez anos de sua vida lecionando, mas que agora não mais possuía pupilos pela força de um contrato. Seu muito saber me constrangeu no princípio, contudo depois fui relaxando; a maneira pela qual ele expunha seus dotes era tão simples e envolvente que desconhecer se tornou uma dádiva. Era prazeroso ve-lo gesticular ao passo que acabava com minha ignorância e de igual modo ver os movimentos harmônicos de seus lábios bem feitos. Em diversas ocasiões desliguei-me do que ele dizia a imagina-los por sobre os meus; sua maciez e gentileza ao beijar-me. Depois a razão chamava de volta à realidade a mente vadia.

O cair da tarde era a hora de dizer adeus; hora de voltar para nossos mundos até o encontro seguinte. Brincava ele que nos separar por algumas horas era imperioso a fim de termos o que narrar depois. Eu sorria tímida. Cada despedida me custava uma parte da noite em vigília, a ruminar nossas conversas, a relembrar cada gesto, cada frase com o intuito de me provocar riso, cada expressão de afeto e admiração.

Meu coração me indagava se estava eu apaixonada por aquele estranho, mas que dizer ao coração? Que sensatez pode haver em quem tem o amor como senhorio? Não  podia racionalmente com ele contender. Lhe oferecia sempre o silêncio como resposta.

Nossos dias ao todo foram cinquenta e sete. No quinquagésimo oitavo, nos separamos, porque assim quis ele. Recebi das mãos de um garçom em nosso sagrado lugar um manuscrito que até hoje repousa no interior do compilado que guarda os versos de Cecília, os meus preferidos. O papel era comum, a caligrafia artística. Li a primeira sentença e tornei a dobrar o papel. Não! Não era verdade! Eu não podia aceitar! Tive ímpetos de atira-lo longe. Quis amassa-lo, com raiva, mas meu músculos tesos pelo sangue congelado em minhas veias me foram um empecilho. Ofegante, pensei que ia desfalecer. Uma nuvem escura já pairava em frente a meus olhos quando uma voz feminina perguntou-me se eu passava bem. Engolindo em seco e sorrindo forçadamente menti á gentil mulher.

Mais do que depressa fugi dali. Refugiei-me em um canto e levei o manuscrito ao nariz, porém nada aspirei além do cheiro da celulose. Que ódio, que dor! Levei o escrito ao peito e ali o mantive por sobre o meu coração até a torrente de lágrimas cessar e com os olhos embaçados o reabri. Sim, a verdade estava ali: o mesmo papel comum, a mesma caligrafia artística, a narrar o seu adeus:

Caríssima,


          Sinto profundamente em assim tão covardemente me despedir. Não suportaria ver em teu rosto qualquer expressão de dor depois de ter sido iluminado tantas vezes com a luz do teu sorriso.
             Não quero que te sintas culpada por coisa alguma, pois mal nenhum me causastes. A verdade é que sou um vilão, um pérfido, que não merece tua amizade e muito menos o teu amor. Sim! Sei que  me amas e eu também te amei desde o primeiro momento, quando teu rosto de anjo remeteu-me a sensações que nunca antes experimentei por mulher alguma. Nunca perguntei teu nome, entretanto estou certo de que é tão lindo quanto a tua voz, ora de menina, ora tão mulher. Insisti em encontra-la porque demorei de me dar conta de que tu não eras uma miragem, fruto da loucura de minhas muitas letras e foi nesse instante que se iniciou o meu delito, pois pareço vivo, mas estou morto. Uma silenciosa enfermidade está me tomando a vida e contra ela já desisti de lutar. Decidi viver o resto de meus dias de maneira inconsequente uma vez que a medicina já foi vencida e vi que me será mais digno cessar de existir, quem sabe, como um boêmio e, assim, quando finalmente cair morto, seja minha aparência menos asquerosa que a do moribundo que aguardou a senhora do destino de todos nós em cima de um leito.
          Melhor será para ti, minha querida, nos separarmos agora, para que teu sofrimento seja menor. É o mínimo que posso fazer. Melhor teria sido não ter eu te causado incômodo nenhum, contudo não posso fazer voltar o tempo. Espero que me perdoes. Tu tens uma vida inteira pela frente e muitos sonhos a sonhar. Não sei para onde vou, mas quero que saibas que não a esquecerei minha Iracema, minha Isolda, minha Julieta.
            Termino aqui permanecendo assim, inominável a fim de que seus lábios não sejam maculados pelo nome de alguém que não merece lembrança. Adeus.


Dobrei a carta de modo a ficar bem pequenininha e a escondi entre os seios. Voltei para casa e vivi muitos dias de luto pelo meu amor, meu Tristão, meu Romeu, com quem vivi uma eternidade de mil, trezentas  e sessenta e oito horas.

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